quinta-feira, novembro 22, 2007

Narciso no País das Maravilhas


... Na laboriosa tentativa de encontrar um lugar no mundo, cada um de nós se alimenta de duas fontes:
1) as aspirações, as normas e os brasões transmitidos por nossos ascendentes, coisas que podem nos dar a sensação de que temos uma missão na vida;
2) o amor, mais ou menos incondicional, que nos acolhe e agasalha nos primórdios de nossa existência permitindo, aliás, que ela vingue.
Em suma: legados paternos e cuidados maternos (é óbvio que qualquer um pode fazer função de pai ou de mãe).
Ora, na modernidade, bebemos sobretudo na segunda fonte.
Por isso, somos todos narcisos, ou seja, mais preocupados em sermos gostados, amados e admirados pelos outros do que com deveres e princípios.
Problema: em geral, o modelo do amor graças ao qual seríamos "alguém" (que sempre significa "alguém muito especial") é o momento em que, pendurados ao peito materno, ou melhor, com a mãe pendurada aos nossos lábios, estaríamos ao centro de um mundo controlado por nós: basta chamar, chorar etc. para que ela apareça e nos faça felizes.
Logicamente, com esse sonho narcisista encravado no nosso âmago, torna-se difícil lidar com separações, frustrações etc.
E, infelizmente, o mundo é um pouco mais cruel do que a mãe-padrão e sempre muito mais cruel do que a mãe mítica e escrava que gostaríamos de ter tido.
Como aprendemos a encarar perdas, danos e fracassos?
Narciso vive no país das maravilhas, diante de uma imensa vitrina de objetos que nos prometem o seguinte: ao alcançá-los, ganharemos o amor, a admiração e (por que não) a inveja de todos.
E alcançá-los é fácil -basta comprar: chocolate, relógios, charutos ou pacotes de férias.
Quem precisa de amores incertos com pessoas de verdade ou de objetos "transicionais" que as representem?
Os objetos do consumo são a melhor escolha; sobre eles temos um controle absoluto.
As drogas propriamente ditas oferecem algumas vantagens marginais: são baratas e, graças à crise de abstinência, garantem a ilusão de dominar perfeitamente a alternância de insatisfação e contentamento.
Mas, na verdade, para Narciso no país das maravilhas, qualquer objeto de consumo serve. Poderia ser o melhor dos mundos, se não fosse por dois detalhes.

1) Se hesito entre um carro e uma amizade ou um amor, é bem provável que minha experiência afetiva seja miserável;

2) se espero a felicidade dos objetos, desaprendo a agir e a desejar.

Contardo Calligaris, Folha de São Paulo - 22/11/2007

Nenhum comentário: